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Arquitetura hostil: quando o espaço segrega

Por Cidades e Serviços
Última atualização: 30/03/2022
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Já aprovado pelo Senado, o Projeto de Lei 488/21 vem suscitando apoio por onde passa. De autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), o texto foi referendado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados e, agora, segue em análise pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Casa. 

O objetivo do PL é vedar o uso de técnicas de arquitetura hostil em espaços públicos. Para isso, pretende alterar o Estatuto da Cidade, incluindo como uma das diretrizes de políticas urbanas a promoção de abrigo, descanso e acessibilidade de todos aos locais públicos e proibindo projetos urbanísticos que “resultem no afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população”.

Tema central do PL, a arquitetura hostil, também chamada de arquitetura defensiva ou desenho desconfortável, ganhou força nos projetos urbanos brasileiros nos últimos anos. Na prática, ela se traduz em intervenções que visam impedir o uso prolongado de equipamentos ou ocupação de espaços, especialmente por moradores de rua. 

“Somos favoráveis ao PL 488/21. A proposta é uma inflexão importante na forma de abordar o desenho dos espaços públicos e a relação com as diversas formas de ocupação do espaço urbano. O esvaziamento das políticas públicas para moradia tem levado a um aumento crescente de pessoas em situação de rua. Como diz o Padre Júlio Lancelotti, ‘ninguém quer ver pessoas habitando um viaduto, mas elas precisam ter o direito de se abrigar’”, posiciona-se Eleonora Mascia, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

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Segundo Eleonora Mascia, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), “o esvaziamento das políticas públicas para moradia tem levado a um aumento crescente de pessoas em situação de rua”

Na tentativa de repelir a permanência no espaço vale tudo: pedras, grades, rampas irregulares, blocos de concreto, espetos de ferro. São cada vez mais comuns, por exemplo, bancos de praça sem encosto, ondulados ou com divisórias. As estruturas são capazes de acomodar pessoas sentadas durante algum tempo, mas deitadas é impossível. Da mesma forma, áreas inteiras embaixo de viadutos, antes abrigo para moradores de rua, começaram a ser revestidas com pedras ásperas e pontiagudas, inviabilizando o pernoite no local.

Na visão de alguns especialistas, a arquitetura hostil é excludente, reforça a desigualdade social e, no fim das contas, se choca com os propósitos de uma cidade aberta, cujo desenho urbano tem a missão de melhorar a relação das pessoas com a cidade e não de segregá-las. 

“A partir da defesa de que a cidade é para todos, não cabe estabelecer que a visão de cidade de um determinado grupo deva prevalecer sobre o todo. São vários os mecanismos utilizados para criar as condições ideais de valorização de parcelas da cidade, de forma a gerar e concentrar ainda mais riqueza. Esse é um lado da moeda, que vê a cidade como mercadoria. O outro lado é a expulsão dos pobres dos espaços públicos, o que aprofunda ainda mais a segregação social e territorial, impactando na vida de todos que vivem nas cidades”, destaca Eleonora Mascia, da FNA.

O projeto, no entanto, não é consenso. Para o sociólogo e consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Tulio Kahn, o debate sobre arquitetura defensiva vem sendo deturpado. “O projeto 488/21 faz uma leitura empobrecedora do que é a arquitetura defensiva, atribuindo seu uso à especulação imobiliária e ao egoísmo humano. Na verdade, trata-se de regular o uso dos espaços públicos, conciliando os interesses de todos os usuários”. 

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“Os defensores da arquitetura defensiva buscam uma cidade ‘regulada’ no lugar do caos” – defende o sociólogo Tulio Kahn.

Tulio lembra que a medida precisa estar vinculada a outras políticas de inclusão para, de fato, imprimir melhorias nas condições de vida da população de rua. “Defender simplesmente o direito de as pessoas permanecerem na rua é, na verdade, uma violação aos direitos mais básicos do ser humano. Ninguém está na rua porque quer, mas é preciso estipular algumas regras básicas. Não se pode, por exemplo, acender fogueiras em qualquer lugar; elas podem danificar a estrutura das edificações, a fiação elétrica, espalhar para veículos etc. Em ocupações irregulares de calçadas, os deficientes físicos são impedidos de transitar, o tráfego é prejudicado. Há um sem-número de violações a determinações municipais para os quais a Administração Pública e a sociedade fecham os olhos, por uma questão de solidariedade”, opina.

 

Condomínios hostis

Alguns condomínios viraram notícia nos últimos anos por conta de projetos polêmicos envolvendo a arquitetura hostil. Em 2014, o jornal britânico Daily Mail reportou a decisão da administração de um condomínio de luxo em Londres que, para evitar a presença de moradores de rua em suas calçadas, implantou pequenos cones de metal, chamados spikes, no chão.

Aqui no Brasil, em 2017, o edifício do cinema Roxy, famoso prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro, instalou um sistema hídrico em suas marquises. Funcionando como uma espécie de chuveiro, o dispositivo jorrava água de tempos em tempos, mantendo constantemente molhada a calçada da unidade e, assim, impedindo a permanência de pessoas em situação de rua no local. 

Mesmo que não adotem projetos tão explicitamente hostis, os condomínios usam uma série de tecnologias e estruturas que reforçam o conceito de arquitetura defensiva. “De uma forma geral, os condomínios fechados são construídos de forma segregada das cidades, com altos muros e portarias com controle de acesso. Soma-se a isso a utilização de dispositivos como metais pontiagudos, cacos de vidro, arames farpados e uma gama de elementos construtivos hostis”, ressalta Eleonora.

As grades talvez sejam os elementos emblemáticos desse movimento. Implantadas em larga escala a partir da década de 1980, hoje em dia elas estão praticamente incorporadas à paisagem urbana das cidades brasileiras. “Da rua para dentro, o proprietário faz o que quiser, desde que respeitados os limites legais. É ele que define sobre a construção de guaritas, grades, jardinagem, tipo de material utilizado, câmeras, etc. Infelizmente, no agregado, temos uma cidade menos amigável. Mas se pode condenar os proprietários por tentarem salvaguardar os seus imóveis? Assim como ninguém escolhe viver na rua, acho que ninguém escolheria espontaneamente viver numa fortificação se o entorno fosse mais seguro e ordenado”, questiona Tulio Kahn.

A segurança é, aliás, o principal argumento a favor da arquitetura defensiva, especialmente quando o assunto são os condomínios. A presença contínua e massiva de população de rua no entorno do condomínio pode oferecer riscos à segurança de condôminos e funcionários. Isso porque a mendicância pode encobrir problemas mais graves, entre eles o abuso de álcool e drogas. Além disso, há as questões de higiene e a perda de qualidade de vida com barulho, odor, animais maltratados, entre outros. Acaba ficando na conta do condomínio promover medidas de segurança, já que as ações governamentais não dão conta de frear o grave problema de falta de moradia no Brasil. 

Para muitos especialistas, aliás, esse é um ponto do qual o debate sobre arquitetura hostil não pode se furtar. Dados de 2019 da Fundação João Pinheiro apontam que há um déficit habitacional de mais de 5,8 milhões de residências, o que acaba por jogar nas ruas milhões de pessoas em todo o país. Somente na cidade do Rio de Janeiro, o Censo de População em Situação de Rua 2020 mapeou cerca de 7,2 mil vulneráveis. Em São Paulo, em 2019, eram 24 mil desabrigados, mas é possível que o número tenha até triplicado durante a pandemia. 

E mais: apenas uma política habitacional eficiente não resolve a questão. “Todo o processo de construção de uma política para a população em situação de rua passa pelo longo processo de organização e busca de autonomia, que se estabelece a partir da moradia em primeiro lugar, mas também com o acompanhamento de políticas públicas de saúde e geração de renda, por exemplo. Sem acompanhamento, as pessoas voltarão para as ruas, onde estão as suas fontes de sobrevivência”, afirma Eleonora, da FNA. 

“Os defensores da arquitetura defensiva buscam uma cidade ‘regulada’ no lugar do caos. Não defendem uma cidade excludente, como o Projeto de Lei 488/21 dá a entender. Mas não dá pra transformar a cidade num enorme camping, como parecem ser alguns bairros das grandes cidades atualmente”, completa o sociólogo Tulio Kahn.


Entrevista 

 

O PL 488/21 é claro: vale para espaços livres de uso público. Sendo assim, que impactos poderá gerar para o condomínio? 

Conversamos com Felipe Werner, advogado e doutor em Direito Civil pela PUC-SP, para entender os desdobramentos da proposta caso seja aprovada pela Câmara.

Revista Síndico: Considerando que o Projeto de Lei 488/21 legisla sobre espaços livres de uso público, como, em sua visão, ele afetará áreas particulares, como os condomínios?

Felipe Werner: Entendo que a lei, de fato, é voltada para espaços públicos, no entanto, quando ela menciona que é vedado o que se convencionou chamar de arquitetura hostil em espaço público que tenha interfaces com os espaços de uso privado, vejo que pode o PL afetar também áreas particulares.

Revista Síndico: Alguns especialistas temem que o projeto de lei acabe gerando proibições como o uso de grades em prédios e portarias. O senhor acredita que chegará a isso?

Felipe Werner: Não acredito que chegará à proibição de grades e portarias, isso, ao meu ver, jamais seria considerado razoável. Mas vejo sim a norma procurando evitar o emprego de técnicas de construção que tenham como único objetivo evitar que pessoas se fixem (mesmo que por um período relativamente pequeno) em espaços limítrofes às áreas privadas, cercadas ou não.

Revista Síndico: O que o condomínio tem de atentar caso o projeto seja aprovado? Que medidas serão necessárias para o cumprimento da lei?

Felipe Werner: Entendo que o condomínio precisará apresentar justificativa para eventuais obras que pretende realizar que possam ser compreendidas como uma construção ou colocação de mobiliário com exclusivo escopo de afastar pessoas.

 

Você sabe o que é Aporofobia?

O Projeto de Lei 488/21 foi inspirado, em parte, nos protestos realizados pelo Padre Julio Lancellotti contra a arquitetura hostil em São Paulo. Em fevereiro de 2021, o padre, conhecido pelas ações de acolhimento a moradores de rua, chegou a usar pessoalmente uma marreta para quebrar pedras pontiagudas instaladas pela Prefeitura sob um viaduto da cidade.

Durante a ação, Lancellotti associou as obras hostis à Aporobofia, jogando luz sobre o termo. Junção das palavras gregas “áporos”, que significa pobre e desamparado, e “fobia”, que significa medo, a aporofobia diz respeito ao ódio aos pobres. Ainda hoje o religioso segue denunciando intervenções hostis nas cidades brasileiras a seus mais de um milhão de seguidores nas redes sociais. 

Por: Aline Durães

 

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