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Na pandemia, espírito olímpico foi posto à prova na edição mais mental dos Jogos

Por Cidades e Serviços
Última atualização: 09/08/2021

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Em dezembro de 2019, foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no planeta. Em março do ano seguinte, a OMS (Organização Mundial de Saúde) anunciava que o mundo vivia uma pandemia. Dezesseis meses depois, contabilizado nesse período o adiamento de cerca de um ano do início de Tóquio 2020, finalmente a pira olímpica foi acesa na capital japonesa — e isso sem a pandemia terminar. Mas com qual fogo? Algo diferente esquentou as Olimpíadas de 2020, uma edição do megaevento mais disposta a debater a cabeça dos atletas, com alta demanda por representatividade e definitivamente com um caráter mais humano.

Não são os Jogos de um Usain Bolt, um Michael Phelps nem de um Dream Team digno do original. Pelo contrário. Naomi Osaka teve uma eliminação precoce num jogo ordinário, Teddy Riner caiu de costas no tatame ainda antes das semifinais e Simone Biles se retirou de competições para cuidar de sua saúde mental.

A preparação dos esportistas não foi a ideal, com finanças e calendários abalados. O mundo vive tempos de luto, enquanto o coronavírus ainda se espalha em Tóquio e as medidas de segurança fizeram da Vila Olímpica um lugar mais pacato que de costume. Torcedores e familiares só por chamada de vídeo, e o sonho de cinco anos, o ciclo mais longo e incerto já visto, virando pressão por um resultado esperado.

O espírito olímpico, conceito em constante mutação de significados, se escancarou numa versão de máscara, exclusivamente pela TV, exposta ao humor das redes sociais depois de meses marcados por restrições. Ele sai atravessado pelos Jogos mais singulares de todos os tempos.

O atleta e a pessoa

A escritora Eliana Alves Cruz, que foi chefe da imprensa da Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos, usa o cancelado cineasta Woody Allen para ilustrar uma defesa dos atletas: “Alguns de seus filmes são obras primas, mas não dá mais para separar a figura [acusada de assédio sexual] de sua obra. Não são só os atletas. É coisa do nosso tempo, e o advento das redes sociais mudou a percepção”, afirma. Se, no caso do esporte, discurso e desempenho disputam o mesmo espaço, onde fica a pessoa?

“Atleta, historicamente, é enxergado como alguém que supera limites. Os casos de Simone Biles e Naomi Osaka mostram que estamos em uma etapa mais complexa do mundo, em que talvez seja preciso ressignificar os papéis dos atletas”, avalia a pesquisadora Leda Maria da Costa, do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da UERJ.

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Douglas Souza, do vôlei, virou um fenômeno das redes sociais
Foto: Frank Augstein/AP

Eliana pondera: “As próprias pessoas públicas se colocam nesse lugar de misturar sua vida esportiva ao culto à personalidade. Uma hora ele vai se expor”. É dessa figura cercada por ambiguidades que se espera espírito olímpico, posicionamento político, além de eloquência na derrota ou na vitória. À frente do palco, um público que se deixa conquistar na primeira mensagem que transmita beleza, se emociona com pequenos gestos construtivos, mas também é rigoroso se a mensagem chegar atravessada.

Nesse sentido, um ponto latente da sociedade atual reverbera. A diversidade sexual e de gênero dá passos importantes em sua inserção natural na repercussão esportiva, como Marta, do futebol, e Ana Marcela Cunha, da maratona aquática, enviando mensagens às suas companheiras pela televisão. Outro exemplo é Douglas Souza, do vôlei, um dos poucos atletas brasileiros a afirmar sua homossexualidade, que virou um dos mais seguidos nas redes sociais dentro da delegação. O “Ousports”, site com cobertura sobre o tema, contou ao menos 180 esportistas que abertamente se assumem LGBTQIA+ em Tóquio.

Por outro lado, a marcação sobre desrespeitos na pandemia é cerrada. O Djokovic que atira uma raquete de tênis irritado com um lance perdido é o atleta de discurso contra a vacina, que organizou um torneio amistoso que ignorou as preocupações com a Covid-19. O nadador Michael Andrew terminou atrás do brasileiro Bruno Fratus na final dos 50 m livre, mas não só: ele se recusou a usar máscara na zona mista, o que aumentou nas redes a comemoração por seu quarto lugar, fora do pódio.

O ídolo, o vilão e os meros mortais

O barro com que é feito o ídolo não vem de terreno tão diferente daquele no qual são forjados vilões. Em tempos de redes sociais, suas figuras superficializadas são curtidas dentro de um mesmo pote cibernético. Em tempos de pandemia e maior sensibilidade ao conteúdo de cada flash, a performance esportiva é só uma parte do que está em jogo para um atleta.

“A construção do herói olímpico sempre foi uma narrativa, e quase sempre enviesada”, diz Leda. “Mas antes as fontes eram o jornalismo e a publicidade, essencialmente na TV. As redes sociais têm colocado novas formas de interação com esses atletas, e isso vira uma fonte do que será narrado sobre eles”, completa.

mulher dando entrevista
Naomi Osaka em entrevista no torneio olímpico do tênis
Foto: Andrew Dampf/AP

Isso pode ser perverso e desfavorecer dramaticamente atletas introspectivos ou com mais dificuldade de se expressar. Naomi Osaka é a mais famosa a admitir que encarar uma sala de imprensa é o pior momento de seu trabalho. A blindagem total não é uma opção. Naomi se permitiu gravar um documentário mostrando algumas intimidades, e usa as redes sociais como suas iguais. “São muitas vozes ao redor, inclusive a dela mesma. Não é à toa que a gente vê tanto desgaste emocional de atleta. É uma parafernália midiática e de olhares”, lembra Leda.

Para Eliana, a parafernália é, ou pode ser, uma boa notícia. “Nos anos 1990 era muito mais cruel. Hoje a mídia especializada se esforça e há um discurso midiático que vem mudando. As pessoas vêm começando a enxergar a história de vida dos atletas”. Ou seja, se é claro projetar a repercussão de uma medalha no vôlei, por exemplo, é interessante também o olhar cuidadoso sobre um remador que cai antes da final, mas faz o maior resultado da modalidade tendo de conciliar a rotina com empregos paralelos no Rio de Janeiro.

A tecnologia gera demanda, e o esgotamento é um sintoma de quem atende esta demanda. No caso do esporte, que é uma espécie de guerra simbólica, o esgotamento do atleta representa o fim da fantasia e dos simbolismos. Deixa de fazer sentido para quem o pratica. Com o encantamento em xeque, porém, surge uma outra linha de aproximação, a que colocou no mesmo lugar os famosos de alto rendimento e os anônimos em seus apartamentos.

“Tudo está ainda muito recente, mas todo mundo buscou exercitar seu corpo, gente fazendo ioga e ginástica online, e os atletas têm um papel nisso. Então você percebe que alguns tiveram condição de manter minimamente a rotina de treinos, enquanto outros foram abandonados à própria sorte”, continua Eliana.

Outro ponto é a ausência de público. É fato que alguns competidores se dão bem sem a gritaria ao redor, mas isso também significa distância da família e convívio mais restrito para além da área do evento. Como as lives musicais, os festivais de cinema online e até as festas com os amigos mediadas por aplicativos, os Jogos Olímpicos se inserem nesse novo formato de comportamento. A interação pelas telas aproxima nossas vidas daquelas dos mais famosos campeões do planeta.

Ao mesmo tempo, houve espaço para novos ares. Mesmo diante desse ambiente de restrição e contato apenas virtual, o skate conseguiu cumprir o desejo olímpico de tornar a programação mais jovem e mais urbana. Com um espírito comunitário próprio e valores competitivos forjados num contexto mais do lazer que da busca por resultado, a modalidade distribuiu sorrisos, abraços, figuras bem diferentes das competições mais clássicas e até adolescentes — sim, atletas de 13 anos — saindo com medalhas no peito. Difícil imaginar que refrescar o programa não seja uma tendência cada vez maior.

Simone Biles, jogos mentais

Embora as Olimpíadas sejam criação da mesma região que se considera o berço da filosofia, nem tudo andou na mesma velocidade, de mãos dadas. Atleta algum teria respaldo nos Jogos de 1928, por exemplo, se reclamasse de burnout. Na verdade, nenhum atleta saberia do que se trata.

Então o resguardo de Simone Biles nas Olimpíadas é também uma vitória da ciência humana que atua nos temas intelectuais e psicológicos. Se ela sai com zero, uma ou cinco medalhas, já não importa. Cada fenômeno social acontece em seu próprio tempo, e a posição de Biles marca o contemporâneo com ênfase.

Eliana fala sobre: “O que ela fez foi um gesto de devolução de cidadania. Se o atleta está com o braço quebrado você vê, mas se ele está com o emocional quebrado você não vê. Do jeito que o esporte está hoje ele não é saúde, é feito pra moer gente. Tem um limite, e o limite chegou para ela”.

“Biles foi corajosa em carregar um mundo nas costas. Todos os atletas de ponta foram crianças olímpicas. São pessoas muito preparadas para lidar com competição, mas a gente também não sabe o grau de luto que passaram nesse período”

Eliane Alves Cruz, escritora, ex-chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos

Em entrevista para a CNN, o nadador Bruno Fratus sublinhou a natureza mental dos Jogos de 2020: “Acho que a pandemia alterou a vida de todo mundo e fez com que o mundo todo tivesse que se adaptar a uma logística nova. Mas de forma prática, acho que essa pandemia, a pausa de um ano, forçou para que os Jogos Olímpicos fossem uma competição muito mais mental do que já é”. Se um notório adepto do jogo mental, como Fratus, viu a diferença ao redor, é sinal de quentura.

Para Serge Katembera, doutor em sociologia pela UFPB e que pesquisa novas mídias e ativismos digitais na África, mesmo os casos similares possuem direcionamento de ódio diferentes. “Nos casos de Biles e Osaka, elas disseram que era saúde mental e ainda assim tem gente que fica desconfiando. São curiosos também comentários de jornalistas que cobrem Olimpíadas há muito tempo e ficam comparando com outros atletas de trajetórias de vida completamente diferentes”, lembra, enfatizando que Simone Biles revelou, em 2018, ter sido vítima de abuso sexual. “Às vezes tudo isso tem a ver. Não sou psicólogo, mas são coisas acumuladas. Ter revelado os abusos sexuais pode ter reflexos que só aparecem anos depois”.

Estrutura e resultado

Bruno Fratus perseguiu por três ciclos olímpicos a medalha que conquistou em Tóquio. Perguntado se era a hora de finalmente descansar e viajar com a esposa, que também é sua treinadora, respondeu: “Vou descansar, sim. Uns três dias”.

Ana Marcela Cunha também disputou duas Olimpíadas antes do ouro na maratona aquática. Em 2011, no Mundial de Xangai, que valia como seletiva para Londres-2012, ficou fora por uma posição. Antes de falar com a imprensa, pediu para a assessoria esperar dez minutinhos. Ligou para a mãe, chorou de tristeza. Depois colocou o boné, respirou fundo e foi atender os jornalistas.

Três dias ou dez minutos, o tempo para o atleta é mais urgente e tirano do que para os demais. Carreiras que acabam cedo, alívios que duram pouco. Muitos não se permitem descanso e se sujeitam à deterioração psicológica por saberem que a derrota fecha portas com uma velocidade muito maior do que as vitórias conseguem abrir.

Thiago Braz, ouro em 2016, bronze em 2021, é um exemplo. Não representou nenhum clube em Tóquio, dispensado pelo Pinheiros durante o ciclo olímpico, mesmo vencedor em 2016. Serge nos leva até a França. “O Teddy Riner, do judô, vem de um instituto nacional do esporte que lançou atletas importantes, campeões e reconhecidos no mundo, de várias modalidades. Ele chega menino no instituto e vai até esse nível”, afirma.

“O Thiago Braz é campeão olímpico num esporte como o salto com vara e não tem um time para treinar. Um esporte de elite, uma das provas mais prestigiadas, onde não é qualquer um que vira um Serguei Bubka [ucraniano, uma lenda da modalidade], é algo importante. Se um atleta desse nível não tem apoio, imagina quem não consegue vencer”

Serge Katembera, doutor em sociologia pela UFPB

Quem acompanha o atleta longe das Olimpíadas?

Leda Maria contou para a CNN como olhou para dois eventos olímpicos. “A narrativa midiática lembrou muito que Ítalo Ferreira começou a surfar com a tampa de isopor do pai. Faz a pessoa pensar que, se quiser, ela consegue tudo. Aí você vê a Rebeca Andrade, sempre com o lembrete de que andava duas horas por dia, de casa até o clube onde treinava. Faz a pessoa pensar na resiliência. O problema é que essa narrativa esconde as diferenças de oportunidades. Por que esses talentos tiveram que passar por tanta dificuldade?”

Alison dos Santos, o Piu, fez uma das melhores provas de 400m com barreira da história do atletismo. Egresso de um projeto social, mostrou, nos depoimentos após a prova, gratidão pelas chances que teve. Há um Brasil que, andando por horas até clubes, improvisando instrumentos ou participando de projetos sociais, não se livra do precário na hora de formar seus atletas — que só chegam na ponta da pirâmide com sacrifício e uma pitada de acaso.

A luz jogada nessas histórias enternece o olhar para os atletas, e se acentua na pandemia. “A grande queixa sempre foi a falta de políticas públicas mais fortes”, lembra Eliana. E isso se reflete também quando chegamos no campo da crítica. “O que os atletas também se ressentem é que ninguém acompanha essas modalidades ao longo de um ano, só na época da Olimpíada. Então como você vai dizer que o desempenho foi bom ou ruim se não acompanhou nada no ciclo. Mas, claro, eles precisam entender que são pessoas públicas e são alvo de crítica”, completa.

 

Fonte: CNN Brasil

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