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Nada Continua… o desafio da urbanidade em tempos de desordem

Por Cidades e Serviços
Última atualização: 03/08/2022
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De um lado, mobiliários urbanos estampando rostos famosos a exaltarem a chegada do 5G, o efeito mágico da tecnologia, as cores incandescentes do digital, a divulgação de promoções para todos os gostos e um mundo inventado pela publicidade que garante a Disneylândia aqui mesmo, ao alcance das mãos.

De outro lado, sujeira, bueiros entupidos, barulho, desníveis de calçadas, furtos e violência, transportes públicos abarrotados e em frangalhos, obras inacabadas e, o mais grave, pessoas em situação de rua relegadas à própria sorte e encaradas com desprezo pelos que seguem apressados. O que tem se tornado a vida citadina se não o que Caetano denunciou desde 1991, ao lançar Fora da Ordem, no álbum Circuladô

 

“Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína.

Tudo é menino e menina no olho da rua.

O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua.

Nada continua.”

 

Sim… vale enunciar tanto que “nada continua”, quanto que “o nada continua”. Significa dizer que temos, ao mesmo tempo, a decomposição de tudo o que mal começamos e também que, como diriam Lopes e Tatit, “tudo está atropelado demais para que seja possível reconhecer uma narratividade dotada de fases distintas, umas após outras”. Estamos sem tempo para aprofundar raízes relacionais com os outros e com pressa demais atrás de metas que nunca terminam. Na urbanidade, estamos, enfim, exacerbadamente impacientes para esperar que o ciclo de cada coisa se dê. Com isso, mergulhamos nossas vidas num imenso vazio simbólico que nos lança na insônia, no stress, na ansiedade, na depressão e na somatização de toda forma. Cabe, então, a pergunta: seriam esses nossos sintomas – tão associados à correria atual – uma certidão de nosso fracasso ou, ao contrário, a revolta de nosso Ser insistindo em gritar que “alguma coisa está fora da ordem nessa nova ordem mundial”? 

O fenômeno paradoxal de junção entre “construção” e “ruína”, cantado pelo poeta, mostra o nível de deterioração das condições de vida nas cidades, fazendo com que o que ‘ainda não é’ passe a ‘já não ser mais, em questão de instante. É o que reforça o sociólogo Zygmunt Bauman, quando diz que, na “modernidade líquida, as condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. (…) A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”

Assim, sem o tempo necessário para a consolidação das formas de estar em conjunto e civilidade, os nossos atos passam a demonstrar, cada vez mais, o aumento exagerado dos interesses individuais. Em bom português, ou melhor, em ‘filosofia de boteco’, equivale dizer que passamos a adotar, como nunca antes, o velho dito popular: “farinha pouca, meu pirão primeiro. Isso pode ser constatado no trânsito, nas filas, nas salas de espera de atendimentos, nas baladas, nos departamentos das empresas, … 

Mas também pode ser visto dentro dos  portões dos condomínios, nas áreas comuns habitadas, entre vizinhos, casais, pais e filhos. Estamos agressivos, exclusivistas e egocêntricos. Quem segura esse rojão? Aqueles profissionais que possuem como dever de ofício a mediação entre nós: terapeutas, professores, diaristas, médicos, garçonetes, guardas de trânsito,… e entre eles, claro, os síndicos. São eles os pobres mediadores da nossa barbárie diária crescente, essa que insiste em tapar os olhos para a necessidade de um novo pacto social. É isso o que está na ordem do dia. Caetano termina a sua canção admitindo: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final”. Essas diversas outras harmonias passam por combatermos atitudes hostis entre nós e nos determos em problemas reais que afetam o coletivo. Não precisamos esperar o fim dos tempos para buscarmos melhores condições de convivência e mutualidade, mesmo diante de tanta turbulência. Basta que mudemos essa rota desenfreada atrás de Neverland (a Terra do Nunca, do Peter Pan) que só nos empurra para a Terra do Nada, reforçando muitas vezes comportamentos insuportavelmente infantis, mimados e individualistas. Acordemos para novos projetos de harmonias bonitas possíveis sem juízo final o quanto antes. Nossas cidades agradecem!

Por: Bianca Damasceno

Referências e Fontes do texto dessa Coluna:

 

VELOSO, Caetano. Fora da Ordem. Álbum Circuladô, 1991.

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