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A violência mora ao lado

Por Cidades e Serviços
Última atualização: 29/01/2013
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Solange Revorêdo foi casada por 17 anos. Durante todo esse tempo, sofreu agressões físicas do então marido. A violência acontecia, principalmente, dentro de casa. Mas as paredes do apartamento não eram suficientes para abafar o sofrimento de Solange. Muitas vezes, as brigas transpassavam os limites da unidade e eram ouvidas e compartilhadas por vizinhos. Do mesmo andar e, quem sabe, do condomínio inteiro. Não demorou para que alguns deles acionassem o síndico do condomínio. “Muita gente reclamava com o síndico, mas como ele já tinha brigado com o meu ex-marido, não fazia nada. Acho que tinha medo da reação dele. As brigas eram o comentário do dia no prédio e eu ficava muito constrangida. Chegou uma hora que parei de sair de casa para não me expor. Sabia que todos sentiam pena de mim e aquilo me fazia mal”, conta.

Casos como o de Solange são lamentavelmente comuns. Pesquisas recentes mostram que uma mulher é espancada a cada cinco minutos no Brasil. Entre 87 países, o Brasil é o 7º onde mais morrem mulheres por conta da violência doméstica: são 4,4 assassinatos em cada grupo de 100 mil. Enquanto a maior parte dos homicídios de homens acontece na rua, as mulheres morrem em casa, vítimas de maridos, companheiros, namorados e antigos casos amorosos.

O problema já despertou a atenção da Justiça, das políticas públicas governamentais e até da mídia, mas continua sendo um tabu em muitas salas de administração condominial. O misto de constrangimento, falta de informação e sensação de impotência fazem muitos síndicos optarem pelo caminho da negligência.

O fato é que, acima de qualquer outra perturbação da ordem e da paz do condomínio, a violência doméstica constitui um crime: desde a promulgação da lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, a violência doméstica deixou de ser considerada crime de menor potencial ofensivo e passou a prever pena máxima de três anos de detenção para o agressor.

Além disso, recentes avanços na legislação permitiram que a ação penal nos casos de violência doméstica não dependesse da vontade ou da representação da vítima. Isso significa que qualquer um com conhecimento das agressões, e não apenas a mulher, passou a ter o direito de denunciar o agressor. Vizinhos e síndicos, inclusive. “A nossa cultura nos ensinou que em briga de marido e mulher não se mete a colher; que roupa suja se lavaem casa. Aolongo de décadas, as pessoas acreditaram nesses ditados populares e se mantiveram distantes das brigas intrafamiliares. Porém, com o passar dos anos e com a organização das mulheres em razão dos altos índices de violência e de homicídios acontecidos dentro de casa por parceiros íntimos, a sociedade passou a revisar esses ditados”, afirma Maria Conceição dos Santos, membro do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim-RJ).

A importância da denúncia
Ingrid* é um exemplo de gestora que deixou o medo e os preconceitos de lado para combater pessoalmente a violência doméstica em seu condomínio. A síndica, que administra um edifício no Grajaú, já enfrentou situações embaraçosas por conta das brigas intrafamiliares. Hoje, os vizinhos problemáticos não residem mais no condomínio, mas Ingrid lembra bem dos episódios de tensão e violência. Da cobertura, onde fica sua unidade, ouvia as constantes brigas entre um casal no segundo andar. “Não tinha horário para a confusão acontecer, às vezes ocorriam no meio da madrugada, às duas, três horas da manhã. A moça gritava tanto que parecia estar dentro da minha casa. Ninguém no condomínio conseguia dormir. Bastava começar a gritaria para que os outros condôminos começassem a me ligar e a interfonar para o meu apartamento. No réveillon2012, aviolência foi tão grande que o homem chegou a agredir até os sogros. Eu pedi para a minha filha entrar na casa do casal e trazer os três filhos deles para o meu apartamento”, narra Ingrid.

Ao longo do tempo, Ingrid descobriu alguns mecanismos capazes de frear a violência. Instalou um porteiro eletrônico que a permitia tocar o interfone da unidade do casal diretamente da sua residência. Assim que as agressões começavam, a síndica do Grajaú acionava o aparelho. “Era um sinal que eu dava a ele. Ele sabia que, depois de tocar, o próximo passo seria eu chamar a polícia. Então, a moça passava a gritar menos e, depois de algum tempo, a briga acabava”, conta.

Mas até essa solução ser pensada e viabilizada, Ingrid recorreu à polícia muitas vezes. Ela narra que, nas noites mais turbulentas, chegava a ter três patrulhas policiais em frente ao seu condomínio. “Já perdi a conta do número de vezes que bati à porta desse casal com a polícia ao meu lado”.

Para denunciar as agressões à polícia, basta ligar para o 190, sem necessidade de se identificar. A interferência policial é importante para interromper momentaneamente a explosão de violência. “Ao chamar a polícia, o síndico está, na verdade, evitando que a briga tenha consequências insanáveis. Não se pode obrigar ninguém a denunciar, mas sempre que existir preocupação com a vida alheia, quer a pessoa represente ou não o condomínio, ela deve acionar a polícia e fazer a denúncia. E se houver suspeita de que a situação de violência atinge também crianças e/ou adolescentes, deve-se comunicar ao Conselho Tutelar, que também aceita denúncia anônima”, ressalta Thais Ariza, coordenadora da organização não-governamental SOS Ação, Mulher e Família.

O chamado policial nem sempre é suficiente para por um fim definitivo às agressões. Muitas mulheres, mesmo machucadas, desmentem a agressão diante dos policiais para impedir a prisão do marido. Era o que acontecia no edifício de Ingrid: ao abrir a porta da unidade para os policiais, a condômina agredida negava a briga, argumentando que o marido estava fora de casa.

A impunidade facilita a recorrência das agressões, mas pode ser explicada pelo grau severo de subserviência e dependência a que muitas vítimas de violência doméstica estão submetidas. “Em um relacionamento entre vitima e agressor, os dois estão doentes e precisam de ajuda, ele por bater, ela por se deixar apanhar. Nenhuma mulher gosta de ser surrada ou se acomoda às agressões. Eu, por exemplo, aguentei 17 anos e não foi fácil sair daquele relacionamento. Durante todo o tempo, eu era coagida, intimidada e cerceada nos meus direitos. Não podia conversar com amigos nem ter contato com a minha família. Embora dependesse dele financeira e emocionalmente, na hora da briga, queria que alguém chamasse a policia para ele ser preso em flagrante”, desabafa Solange Revorêdo.

Problema de todos
Quando a briga de casal extrapola os limites do apartamento e coloca em xeque a segurança e a harmonia das outras unidades, está na hora de o síndico agir. Mas a participação do gestor condominial é importante também nos momentos de calmaria. Se for o caso, o síndico pode, por exemplo, conversar com a condômina agredida nos dias posteriores ao episódio violento. O contato deve ser discreto e há de se ter cuidado para não constranger ainda mais a vítima. No caso de o gestor ser homem, é recomendável que leve uma mulher para deixar a condômina à vontade. “Se o síndico não quiser participar da conversa, pode orientar uma mulher residente no condomínio que seja mais próxima dessa vítima para orientá-la a procurar ajuda nos serviços de proteção à mulher”, sugere Maria Conceição dos Santos, do Cedim-RJ. Caso prefira, o administrador tem ainda a opção de recorrer a profissionais especializados em situações como essa, como psicólogos, representantes da Defensoria Pública ou membros de ONGs e órgãos de defesa de direitos da mulher em geral.

Seja qual for a abordagem escolhida, é importante lembrar que ela deve ser feita sempre quando a vítima estiver sozinha, longe do marido. Caso contrário, afirmam os especialistas, a mulher pode sofrer represálias em casa. “O mais importante é entender que cada caso é um caso e que se deve respeitar as peculiaridades de cada situação”, alerta Thais Ariza, da SOS Ação, Mulher e Família.

Desde que acompanhado de outros condôminos, o síndico pode abordar também o agressor. Neste caso, o ideal seria informá-lo de que as agressões incomodam a vizinhança e alertá-lo sobre as consequências que o comportamento violento acarretará. No condomínio do Grajaú, Ingrid convocou uma Assembleia para discutir punições mais severas ao agressor do segundo andar. Na reunião, os condôminos decidiram aumentar a multa para a infração: passou de 50% para 100% do valor da taxa condominial.

Para os especialistas no assunto, o combate à violência doméstica passa pela conscientização de todos no condomínio, de funcionários e demais condôminos, inclusive. “Pode-se afixar os endereços dos serviços de atendimento, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e outras delegacias nos quadros de avisos. Seria interessante também dar visibilidade a telefones de emergência para denúncia de violência. Outra opção seria promover debates nos condomínios, com a distribuição de folders ou folhetos educativos com orientações para os condôminos”, afirma Maria da Conceição, lembrando que esses informativos podem ser solicitados no Conselho Estadual de Direitos da Mulher, no Rio de Janeiro, e na Secretaria Nacional de Direitos da Mulher, em Brasília.

O resultado do esforço contra a violência é uma gestão mais calma, harmônica e cidadã. “Ao cumprir esse dever social e político, o gestor está lutando por novos paradigmas de conduta para as pessoasem formação. Estádando mais um passo em direção às modificações sociais que todos almejamos”, completa a coordenadora Thais Ariza.

*O nome da síndica foi alterado.

 

Texto: Aline Duraes

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